O esvaziamento espiritual da Europa e do mundo moderno: um legado do racionalismo cartesiano
Patrícia Castro
10/31/20254 min read
Na Holanda, antigos templos católicos belíssimos, muitos deles tombados como patrimônio histórico, foram convertidos em academias, cafeterias, bibliotecas e até moradias.
Na Suíça, pasmem: há igreja que hoje funciona como loja de produtos eróticos.
E esse fenômeno não se limita a esses dois países. França, Bélgica, Espanha, Escócia, Canadá e até mesmo a Itália seguem o mesmo caminho. Seus templos sagrados vêm sendo transformados em espaços utilitários, culturais ou comerciais — símbolos visíveis de uma Europa que está perdendo a fé.
Mas, afinal, o que está acontecendo com os europeus que outrora foram os guardiões da cristandade, os construtores de catedrais, os mártires e missionários que levaram o Evangelho a todos os continentes? O que levou um continente que um dia respirou cristianismo a perderem a fé ao ponto de transformar suas igrejas em meros espaços de entretenimento ou consumo?
Para responder a essas perguntas, é preciso rastrear as ideias e descobrir quando a história começou a mudar de rumo — quando as raízes filosóficas começaram a corroer lentamente o edifício espiritual do Ocidente.
Tudo começou quando fé e razão, que durante séculos caminharam juntas, foram separadas pela nova mentalidade inaugurada no século XVI com Martinho Lutero, e levada ao extremo, um século depois, por René Descartes, o pai do racionalismo moderno.
Foi a partir de Descartes que o homem ocidental passou a buscar a verdade fora de Deus, acreditando poder construí-la apenas com a própria razão. Essa inversão deslocou o eixo da cultura: o homem deixou de ser um ser em relação ao divino e passou a ser a medida de todas as coisas.
A Reforma e o questionamento da autoridade da Igreja
Cem anos antes de Descartes nascer, Lutero rompeu com a autoridade do Papa e da tradição católica e inaugurou um tipo de fé baseada na livre interpretação das Escrituras.
Engana-se quem pensa que a revolta de Martinho Lutero contra a autoridade da Igreja ficou restrita ao campo religioso. Suas consequências ultrapassaram os muros dos mosteiros e alcançaram o coração da cultura ocidental. A partir dele, o homem cristão passou a ver a fé como algo subjetivo e individual, rompendo o vínculo entre a verdade e a autoridade exterior da Igreja.
A consolidação do racionalismo cartesiano
René Descartes (1596–1650), filósofo francês e católico de formação, nasceu cerca de cem anos após Lutero e consolidou uma filosofia centrada na razão individual:
A frase de René Descartes — “Cogito, ergo sum”, “Penso, logo existo” — é considerada o marco da filosofia moderna. À primeira vista, parece uma descoberta genial, mas, na verdade, carrega o germe da crise espiritual do mundo moderno.
Descartes buscava uma certeza absoluta e, ao duvidar de tudo, concluiu que não podia duvidar do próprio ato de pensar. Assim, afirmou que o pensamento era a única prova indubitável da existência. Mas aqui está o erro: ele inverteu a ordem natural das coisas.
O homem não existe porque pensa — ele pensa porque existe.
O pensamento é consequência do ser, não sua causa. Antes que o homem possa pensar, ele já foi criado, já participa do Ser que vem de Deus.
Ao colocar o pensamento humano como fundamento do existir, Descartes fez do “eu” o centro da realidade.
A verdade, que antes vinha de fora — de Deus, da Revelação, da ordem criada —, passou a vir de dentro, da mente individual.
O homem deixou de contemplar a verdade e começou a fabricá-la. O homem se tornou um prisioneiro dentro de si, fechado num subjetivismo e desconectado da realidade.
A partir daí, nasceu o subjetivismo moderno:
· Lutero dissera: “Cada um interpreta a fé como quiser”.
· Descartes completou: “Cada um define a verdade por si mesmo”.
O resultado disso é que tudo que não podia ser provado racionalmente — fé, milagres, sacramentos — tornou-se suspeito ou irrelevante. O indivíduo tornou-se o centro do conhecimento, separado da comunidade e da transcendência.
Consequências práticas na vida espiritual
O racionalismo cartesiano aprofundou um processo que havia começado com Lutero.
A autoridade moral e espiritual da Igreja foi enfraquecida, e a fé, antes vivida em comunhão, passou a ser reduzida a uma experiência privada e subjetiva.
Séculos depois, vemos seus frutos amargos: templos fechados, igrejas transformadas em academias, museus, bares, cafés, lojas e até residências. A casa de Deus, antes o coração pulsante das cidades, tornou-se apenas mais um imóvel em meio ao mercado das coisas úteis.
Descartes não negava Deus — mas, ao colocar a razão acima da fé e da tradição, abriu uma fenda que aos poucos separou o homem de seu Criador. Sua filosofia inaugurou uma era em que o “eu penso” substituiu o “nós cremos”, e o resultado foi um progressivo esvaziamento espiritual — não apenas da Europa, mas de todo o mundo moderno.
O desafio do nosso tempo é recuperar o equilíbrio perdido: reconciliar fé e razão, recolocar Deus no centro da cultura e restaurar a dimensão comunitária da espiritualidade, como sempre ensinou a Igreja.
Hoje, o paganismo volta a bater às portas do Ocidente. Os muçulmanos e os comunistas não assistem passivamente ao colapso da fé cristã — avançam, ocupam espaços, moldam mentalidades e impõem suas visões de mundo.
Em muitos países, já não há traço visível da cultura que um dia edificou catedrais, universidades e santos.
A civilização que nasceu da fé corre o risco de perecer pela descrença. E o que começou com um simples “penso, logo existo” terminou em um mundo que já não sabe mais por que existe.

