Quando a Fé e a Razão se Separaram: Lutero, Descartes e a Crise da Modernidade
Patrícia Castro
10/18/20253 min read
Para compreender melhor o mundo moderno, é preciso voltar um pouco no tempo e entender como funcionava a fé antes de Lutero. Até então, o cristão vivia em comunhão com a Igreja, confiando na autoridade visível do Magistério como intérprete legítimo da Revelação.
Com Lutero, essa estrutura se rompeu. Ele proclamou o princípio do “livre exame” (Sola Scriptura): Cada indivíduo pode interpretar a Bíblia por si mesmo, sem depender da Igreja.
Embora pareça um ato de liberdade espiritual, essa ideia destrói o conceito de autoridade objetiva. A verdade deixa de ser algo seguro e compartilhado, passando a depender da consciência individual.
É a substituição do “creio porque a Igreja ensina” pelo “creio porque eu interpreto”. A verdade, até então, era transmitida pela Igreja e recebida pelos fiéis.
Descartes: a ruptura com a autoridade da realidade
Um século depois, René Descartes (1596–1650) aplica esse mesmo espírito à filosofia. Ele também rejeita a confiança na autoridade — agora não mais da Igreja, mas da tradição filosófica e da experiência sensível. Seu ponto de partida é famoso: Cogito, ergo sum — “Penso, logo existo”. Descartes coloca o “eu pensante” como critério único da certeza.
Assim como Lutero fez da consciência individual o árbitro da fé, Descartes faz da razão individual o árbitro da verdade. Ambos inauguram a subjetividade moderna — a ideia de que a verdade nasce de dentro do sujeito, e não de fora, da Revelação ou da realidade objetiva.
A linha de continuidade é clara:
Martinho Lutero (1483–1546)
Rompe com a autoridade da Igreja
Substitui o Magistério pela consciência individual
Sola Scriptura — cada um interpreta a Bíblia
Gera pluralismo religioso
Rejeita a mediação e comunhão — a verdade é inventada pelo indivíduo
René Descartes (1596–1650)
Rompe com a autoridade da tradição filosófica
Substitui a realidade pela razão individual
Cogito — cada um parte apenas de sua própria mente
Gera relativismo filosófico
Rejeita a mediação e comunhão — a verdade é inventada pelo indivíduo
As consequências culturais e espirituais
O mesmo espírito de revolta interior que levou Lutero a reinterpretar o Evangelho também moveu Descartes a reinterpretar a própria noção de verdade. Cada um, em seu campo, tornou-se pai do individualismo moderno: Lutero na teologia, Descartes na filosofia.
Da teologia subjetiva de Lutero nasceu a fragmentação religiosa — milhares de seitas, cada uma com sua própria “verdade bíblica”. Da dúvida cartesiana nasceu a fragmentação filosófica — sistemas de pensamento desconectados da realidade e centrados na mente humana.
O resultado foi um mundo em que fé e razão se divorciaram, rompendo com a filosofia de São Tomás de Aquino:
· Lutero rompeu a fé da razão;
· Descartes rompeu a razão da fé.
Da soma desses dois movimentos surge o mundo moderno:
· sem Igreja, porque cada um tem sua fé;
· sem Verdade objetiva, porque cada um tem sua razão;
· sem Deus como referência estável.
O homem moderno, órfão de ambas, passou a viver sem referência ou transcendência, entregue ao relativismo e à dúvida. Como disse o Papa Bento XVI:
“Quando Deus é excluído, a razão enlouquece.”
O que começou como uma rebelião espiritual no século XVI culminou em uma crise civilizacional: a revolta contra a Igreja se tornou, gradualmente, uma revolta contra a própria Verdade.
O resultado é o relativismo contemporâneo, em que tanto a fé quanto a razão são substituídas pela opinião. Basta observar qualquer debate hoje: pessoas discutem ideias como se a verdade fosse relativa à opinião de quem nunca se aprofundou nos estudos, apenas absorvendo informações fragmentadas de meios de propaganda. O mundo perdeu a noção de sua própria ignorância.
Não quer se perder no caldeirão ideológico do relativismo? Sigamos a orientação de um dos pais da Igreja: Santo Inácio de Antioquia (c. 35–107 d.C.). Mártir e bispo de Antioquia, Inácio foi levado a Roma para ser executado em um anfiteatro, devorado por feras, por professar sua fé em Cristo. Durante o caminho, escreveu sete cartas fundamentais, defendendo a unidade da Igreja e a autoridade dos bispos.
Em uma de suas cartas, ele — que viveu muito próximo da época de Cristo — nos deixou esta poderosa orientação: “Onde está o bispo, ali está a Igreja.”
Permaneça com a Igreja, que sempre nos ensinou que fé e razão caminham juntas, ambas iluminadas por Deus. A Bíblia é um livro católico, fruto da própria Igreja, e somente ela possui a interpretação correta de suas palavras. Crer corretamente é manter-se ancorado na realidade do mundo.

